as mesmas vigas que nos separam são as mesmas vigas que nos sustentam

Ainda na ausência de álcool no dia anterior, se hoje é domingo, a ressaca nos visitará os pensamentos, mesmo naquele instante de um lado para outro na cama, conscientes de nossa existência, embora nossos olhos estejam fechados e talvez por isso, a mente encontra-se aberta ao infinito. A visão pode trazer limitação, pensei, enquanto reparava que enquanto não abrimos os olhos podemos fingir que ainda não fomos lançados ao mundo e aproveitamos aquele lapso temporal para passear em qualquer direção ao compasso do surgir de uma projeção qualquer. Em frações de segundo, eis aí uma cena e de repente, estava eu, de olhos fechados, passeando pela casa que habito desde o dia que vim ao mundo, até que cheguei à cozinha. Dei-me conta de vozes no mundo fático e captei o desespero de suas almas enquanto faziam qualquer coisa como lavar a louça, passar a manteiga ou comentar sobre o noticiário. A vida era sempre um convite para aquilo? Talvez não fosse melhor fingir que ainda durmo? As vozes reais se confundiam com a cena traçada por minha mente e eu, sem forma, me deparei com a parede que separa a cozinha da sala, o lugar do preparo do lugar de mesa. O ambiente não ficaria mais bonito se aquela parede fosse derrubada? Eu já havia pensado mas sem aplausos porque parece que essa era uma das paredes que não podiam ser derrubadas foi quando soprou uma voz, sabe se lá da onde: as vigas que nos separam são as mesmas vigas que nos sustentam. Caí em mim. Era uma frase tão minha mas ela havia sido soprada pelo universo naquele momento onde eu estava debruçada pelo meu oásis, aquelas paredes que me separavam e me sustentavam. Seria todo oásis uma miragem e a vida um constante convite ao deserto? E se o deserto é a nossa verdade, por que será que nossa pele continua ressecada, afinal, não fomos feitos para ele? Devia haver algo mais mas talvez eu não devesse me atrever a descobrir, afinal, não era egoísmo construir paraísos particulares para si enquanto as vozes ainda clamam? Nesse instante, em particular, enquanto dominava a minha mente para não vagar por aí lembrei-me do meu pior pesadelo. A minha visão de inferno não era um demônio, fogo ou dor. O que mais me aterroriza é o vazio e a não-existência. Repetidas vezes, durante a infância, sonhei caindo no lugar sem nome e só o fato de não ter um nome é mais assombroso que uma ideia caricata de inferno em si. Caindo, sem fim, no preto sem nada para segurar, ninguém para compartilhar nem dor para extirpar. Tão terrível quanto a minha visão de inferno particular era a visão de céu que compartilhavam: ou um mundo amplo e infinito branco qualquer, com pessoas sem rosto e sem nome, sem história e sem diversidade, cantando a mesma música o resto da vida. De vez em quando, trocavam o branco pelo campo imenso verde com um céu azul, sempre azul e aquilo me doía de igual maneira. Me desculpem os extraterrestres. Mas eu sou profundamente humana e não desejo outra casa além desse mundo. A ideia da vastidão ilimitada me cansa e me lembra que se há espaço, há espaço para criar. Derrubar paredes e tornar amplo é acabar com as descobertas de desvendar ambientes, de entrar e sair e a vida é sempre um convite ao mistério. Dei-me conta, por fim, que é preciso vigas e que elas nos sustentam e que se é preciso viver, que vivamos assombrados pela beleza de desvendar. Pedi perdão nesse segundo a Deus por querer um destino final, um nome qualquer para uma rota traçar porque constantemente o universo me convida, cordialmente, a criar e co-criar. Eu não sei o que será amanhã e não quero dar um nome ao meu propósito porque limitaria a minha visão ao que outro já viveu enquanto isso ou aquilo. Lembrei que Abraão recebeu um convite para um lugar sem nome e só foi. Quem disse que Deus mostra o destino? E quem disse que o destino é destino? Desatino dos viventes, e meu, querer sempre uma resposta para o amanhã quando se pode desfrutar o hoje e – ainda que o futuro que te reserva seja sem um nome determinado, não é o nome da função ou o lugar que determina nada. Quem determina é Abraão. Sou eu. O único nome que importa é o nome de pessoas, percebe? E cada uma delas tem suas vigas, que nos separam, mas as sustentam e nos convidam aos seus pequenos universos e histórias. Deus me livre do Deus que é o Deus dos outros. Deus me livre do inferno e do paraíso alheio. Deus me conduza ao Deus de Abraão, Deus de Isaque, Deus de Jacó. Um Deus que se revela a cada um e ainda convida a um destino que se limita somente às nossas próprias vigas, as mesmas que nos formam, afinal, abertos ao mundo amplo, existe um espaço pequeno e cheio de pequenezas, limitado porém não destinado e sempre pronto para ser reformado depois de apreciado que somos todos nós.

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